Revolução e Involução*
por
Luiz Roberto Londres
Preâmbulo
A marcha da história das missões das profissões deu uma "meia volta, volver" e ouviu, de maneira um tanto literal, o comando de "ordinário, marche". E deu-se a regressão das conquistas, acompanhada de uma crescente idiotia pessoal e social.
Vamos começar pelo meu tempo de estudante. Sou da turma do IV Centenário da cidade do Rio de Janeiro da então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Vivi, na minha época de escola, uma experiência política que hoje não se vive em lugar algum, muito menos na própria política. Não havia Internet, a televisão era local, longe de ser sequer nacional, mas sabíamos e discutíamos a política do mundo, presente e passada. Jacobo Arbenz, na Guatemala, em 1954; e Imre Nagy, na Hungria, em 1956, entre outros, eram nossos "conhecidos". A paixão permeava nossas discussões. As eleições para o Diretório Acadêmico beiravam o pugilato acabando, quase sempre em meio à madrugada, em função das tentativas de cansar o outro lado por aqueles que anteviam uma derrota. Esquerda e direita estudantis se mesclavam com a esquerda-direita da política nacional e da ideologia mundial. Se, por um lado, a paixão cegava nossa lógica, por outro acendia a integração social. Fora das discussões, éramos amigos, como somos até hoje. Nossa imprensa tinha a missão de nos informar, nossa escola tinha a missão de nos formar, nossos políticos ainda não tinham a missão de nos deformar.
Assim eram todas as escolas, assim éramos nós, jovens, assim eram nossos professores, nossos jornalistas, nossos políticos. Mas o despertar da juventude em seu caos natural se tornava perigoso e inconveniente para quem quisesse conservar o status quo, fosse ele de poder, riqueza, posição social ou simplesmente de imposição de suas idéias. Tivemos por aqui 1964, com os tanques descendo de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Era apenas uma amostra. O mundo teve, em 1968, a primavera do Hemisfério Norte, uma convulsão ideológica que se iniciou na Universidade de Nanterre nos arredores de Paris. Esse movimento foi tão importante que arregimentou contra si a esquerda e a direita. Era liderado por um jovem, Daniel Cohn-Bendit, cujo "pecado" era desafiar o poder, fosse ele qual fosse. Queria, de qualquer maneira, a liberdade de pensamento. Na nossa primavera desse mesmo ano, tivemos o AI-5, que fez hibernar nosso pensamento político e fez desaparecer o elã dos jovens estudantes. Voltavam os universitários para o colégio primário, empobrecidos pelo medo e, por vezes, pela cumplicidade.
Esses jovens inconformados eram acompanhados pelas bandeiras negras do movimento anarquista, que costuma se reacender quando o poder passa a se estabelecer por si e para si, esquecendo que sua função é mais transitiva (verbo) que afirmativa (substantivo). Ou seja, quando a força de comando substitui a possibilidade de coordenar ações e movimentos que tragam progresso social. É o que acontece quando os servidores públicos passam a dar mais importância a si do que à missão para a qual foram investidos.
A interrupção pela força dos movimentos revolucionários da década de 1960 (além da França, tínhamos o Bader-Meinhof na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, e as guerrilhas como os Montoneros na Argentina, e Tupamaros no Uruguai e outros, nos países menos desenvolvidos, inclusive no nosso) moldou um mundo de cabeça para baixo onde as botas faziam as cabeças rastejarem. Ter pensamento político ou ideológico próprio, fora dos padrões estabelecidos pelo poder, era punível, muitas vezes com a morte. Ali morria o idealismo de uma juventude e passavam a ser moldados, num movimento estranho, controverso e paradoxal, futuros adultos na idade, mas infantilizados em suas razões e emoções.
Antes havia a evolução gradativa na conscientização de desvios que se desmascaravam, como o modo com que os jovens, já bem progressivamente mais integrados em seu papel social, de construção de um mundo onde eles seriam os protagonistas, eram desconsiderados pelos adultos que queriam manter uma situação já moribunda. A consciência de um fato como esse traz a reboque julgamentos morais de algo que antes era quase silêncio. A partir de um determinado momento, a evolução assume ares de revolução, já que nada foi feito para que se alterasse a situação vigente. A barreira à interpenetração de idéias que se opõem acaba gerando a intolerância de parte a parte. As mãos não mais se dão em gesto amigo; passam a pegar em todos os tipos de armas.
A explosão tem sempre, em curto prazo - e isso pode ser medido por décadas - resultado deletério. Isso acontece também com a opressão. No caso em questão, a interrupção de anseios libertários, por parte da juventude em tantos lugares de nosso planeta, teve como resultado uma geração impregnada pelo medo ou pelo descaso. A beleza da participação na vida política foi abortada. Resta-nos lamentar o movimento natimorto e aceitar novos e áridos tempos de "paz". Os rebeldes de ontem se arrastam pela própria existência, sem horizonte, por vezes se vendendo a uma realidade na qual não acreditavam. Os fatos se repetem, os resultados não acontecem, a memória vai se apagando, a escravidão dissimulada vai se instalando, o tempo vai passando até o dia do seu adeus. E, no final de seu exílio, terão uma última frase: "Meninos, eu vi!", como no poema "I-Juca-Pirama". Mas, à sua volta, Gonçalves Dias será apenas um desconhecido.
Uma geração à frente e temos uma réplica do pesadelo futurista Admirável mundo novo de Aldous Huxley, ou do THX 1138, de George Lucas: seres humanos impregnados pela apatia e pela idiotia. Nada a sentir! Quando se sente, nada a se fazer! Quando se atinge um ponto de indignação, a reação é pífia! Um passo além leva apenas a conversas com uma mescla de revolta e desencanto! O muro que nos separa do futuro está cada vez mais próximo e mais impenetrável. E enquanto a quase totalidade dos seres humanos tem seu horizonte próximo ao rés-do-chão, uma pequena parte manipula e se locupleta, tomando cuidado para que a massa não adquira consciência. Há que incutir o medo! Há que se preservar o estado de constante alarme por perigos fabricados! Há que se vender jornal, segurança, remédios, armamentos e muitas outras coisas.
Diria Drummond: "E agora, José?". Agora que uns e outros, eu e você estamos acordando, é hora, já muito tarde, de olharmos as coisas como são e não como nos mostram. É preciso ver o que podemos fazer, cada um de nós por si ou em conjunto, para novamente voltarmos a uma vida que possa realmente merecer esse nome.
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Conclusões
Bem, é hora de voltar à Medicina e às suas companheiras. Nossa era se caracteriza por uma completa inversão de consideração de valores, dando-se prioridade ao que é supérfluo, ao número, à ostentação, ao aparato, às aparências. As essências encontram-se encolhidas e escondidas como se envergonhadas, por não saberem falar mais alto do que seus arremedos. Vamos comparar alguns campos de atuação eminentemente social dos dias de hoje com o pensamento social da juventude dos anos 60. Afinal, muitos deles estão hoje do lado oposto, alguns continuam no seu caminho com novos aliados, e outros desapareceram.
Nessa inversão de valores, a Medicina, tão bela em suas origens, em sua história, em sua missão, passa por momentos que a desfiguram, a denigrem, a tornam mais uma ameaça do que uma bênção. A missão de tratar sempre, curar quando possível sofreu uma contramão que poderíamos resumir como "cobrar sempre, receber quando for possível". O campo onde se passa a Medicina foi tomado de assalto por intermediários que nada têm a ver com o ato médico, com seus resultados, com as pessoas que dele necessitam ou mesmo com as pessoas que o executam. Tudo é reduzido a números que têm, em seu ápice, os cifrõe$. Se as contas vão bem, o resto não interessa; se as contas vão mal, o resto é um problema.
Aliás, o comprador de um seguro é sempre cortejado, um paciente é sempre olhado de viés. Idosos e crônicos, os mais necessitados de cuidados médicos, são progressivamente mais discriminados em suas necessidades. O que interessa é a massa pagante, o que não interessa é o "refugo" que está embutido nessa massa. Anúncios de todos os tipos em todos os lugares oferecem justamente aquilo que mais tarde é negado. O mesmo acontece com compradores de remédios (nesse caso os miseráveis não têm remédios para as suas doenças, mas os ricos têm "remédios" para as "necessidades" que lhes são criadas). Farmácias, bem como clínicas, hospitais e centrais de exames brotam quase em cada esquina em busca do seu financiador, o doente ou o que pode, pela persuasão, se sentir adoecido.
A imprensa informava, tinha sua posição ideológica conhecida, procurava, com suas exceções, ser sincera. Havia uma meta, a de tornar público aquilo que fosse de interesse público. Havia um respeito pelo público e, mais importante, havia um respeito pelos jornalistas. Hoje, esses jornalistas, assim como os médicos e outros profissionais da maior importância, são meros funcionários de empresas de comunicação, desestimulados quase sempre a emitir opiniões contrárias à linha mestra do órgão em que trabalha. Linha mestra essa que, assim como na saúde, visa à audiência do momento e ao balancete mensal.
Hoje temos a venda de alarmes e variedades. Hoje não temos mais questões políticas debatidas, temos dossiês e crimes que não costumam levar a nada a não ser à venda de jornais e de minutos durante algum tempo para, logo depois, serem esquecidos em função de novos dossiês e crimes que visam a alimentar o estado de espírito de sobressalto e de indignação de quem ainda acompanha as notícias. Manchetes como a estampada na primeira página de um grande jornal, "EUA devolvem poder ao Iraque, mas mantêm o controle", desafiam nossa inteligência e servem, ao menos, para nos despertar em relação à capacidade ou à intenção dos responsáveis por sua produção. Isso não é culpa dos jornalistas de verdade, por vezes forçados a assinar matérias com manchetes fabricadas por terceiros.
A educação ensinava, formava, ministrava conhecimentos específicos e gerais, nos levava a outras paragens através do aprendizado de idiomas diversos e de passeios por culturas bem diferentes da nossa. Não havia a tentação de reduzir o que víamos em outras nações ao que vivíamos na nossa. A diversidade era aceita e louvada. O ensino público era fantástico, o foco estava no ensino fundamental e não apenas nas universidades. Nosso "aqui e agora" se aproximava do infinito e do eterno. Éramos cidadãos do mundo, mesmo se do mundo soubéssemos apenas tinturas; mas essas tinturas eram o que davam o matiz da vida sobre nosso planeta. Guerra e paz ainda não haviam construído a promíscua relação que têm em nossos dias.
Hoje temos empresas que exploram o ensino, geralmente o universitário, ajudando a aumentar o fosso que existe entre a crescente população dos sem-instrução nenhuma e a quantitativamente crescente, mas qualitativamente decrescente população dos que têm o chamado ensino "superior". Hoje não são formadas pessoas, é formada mão-de-obra para empresas que as vão empregar. Hoje temos a produção em série de seres que irão oferecer seus serviços cada vez mais próximos à situação da escravatura. Formemos milhares para que o preço do salário entre em competição. Resultado social de tudo isso? Ah! Isso não importa!
Como não importam aos políticos as depressões sociais que suas inações ou mesmo suas ações produzem. Assim como os pacientes passam a servir aos intermediários da saúde, espectadores e leitores passam a servir às empresas de comunicação, estudantes passam a servir às escolas, assim também o povo passa a servir aos políticos e não os políticos a servir ao povo. Acredito que uma profunda e benéfica mudança que poderia ocorrer em nosso meio seria a de deixarmos de considerar pessoas como "autoridades", a não ser no real exercício de sua função. Fora disso são funcionários públicos, sem nenhum direito acima do cidadão comum e com uma ressalva: são pagos por esses mesmos cidadãos, por mim, por você.
Diante de toda essa involução, cabe apenas uma revolução. Não pelas armas, não pelos movimentos populares, mas pela crescente conscientização de todos a partir dos núcleos, mesmo que poucos, mesmo que pequenos, que tenham essa mensagem a passar. Não devemos esperar resultados em curto prazo, mas podemos ter a certeza de que mensagens com eco na maior parte da população (mesmo contra o que pregam os órgãos de classe aí incluída toda a área de comunicação) crescerão em escala geométrica e vão se impor contra desvios de percurso a que foram levadas pela ausência de atividade política da população.
É preciso que novamente se plante a semente da cidadania.
* Artigo publicado no livro "Sintomas de Uma Época".