Orfandade
por Luiz Roberto Londres
O título em questão não se refere à orfandade em relação aos pais, àqueles que conceberam um ser humano, que o criaram para a vida. Muito mais amplo é o sentimento de orfandade social em seus diversos segmentos. Hoje sinto essa orfandade como cidadão, como médico e também como pessoa.
O que ouço dos meus representantes, que preferem se intitular "autoridades"? Deles ouço promessas, auto-elogios, propaganda, explicações pouco convincentes, etc. De pessoas como eu, simples cidadãos, ouço que são corruptos, corruptores, nepotistas, sem-vergonhas. Mas... Nada muda, tudo continua, escândalos se sucedem, atos torpes e por vezes quase criminosos se perpetuam; e nós, cidadãos... Continuamos reclamando, nos indignando, mas permanecemos de braços cruzados, em uma atitude que mistura fatalismo, desânimo e até mesmo resignação. Estamos nós, cidadãos, não só órfãos de nossos representantes, mas órfãos de nós mesmos.
O que ouço da minha Medicina, daquela atividade que de tão nobre era tida como um sacerdócio? Como médico estou órfão de muitas coisas: daqueles mestres como Clementino Fraga Filho e Aarão Benchimol, cuja presença já era, por si, a maior aula de ética possível, tornando desnecessária qualquer explicação a respeito; daqueles cientistas, como Carlos Chagas Filho, para quem a ciência era um destino e, na sua humildade, um constante perguntar, jamais uma ostentação soberba, detentora de verdades definitivas. Estou órfão do meu fantástico serviço público e de minhas entidades beneficentes, onde as pessoas eram atendidas como pacientes - alvo de atenção e dedicação de todos - e não como cifrões, que traduzem apenas receitas ou despesas, transformando pessoas em mercadorias de redes de "medical centers" e outros tipos de "shopping centers" da saúde.
Órfão estou da vizinhança amiga, hoje encarcerada como eu atrás de grades e cancelas, seguranças particulares e carros blindados. Olho as ruas e vejo que estou órfão das multidões que as habitavam em seu ir e vir, fosse ele durante o dia em suas atividades, fosse ele à noite em seu lazer. Estou órfão daquele padeiro e daquele leiteiro, que passavam em nossa rua e vinham às nossas casas - mais do que servidores, pessoas de nossas relações. Estou órfão e, nisso vai uma grande dose de saudosismo, do bonde que nos levava em um misto de abrigo e ar livre, onde dividíamos o banco com outros 4 ou 5 passageiros e onde o condutor vinha até nós para cobrar as passagens.
Estou órfão também da minha polícia que me tranqüilizava com seus "Cosme e Damião", portando simples cassetetes e nunca uma arma de fogo. E estou órfão de uma Justiça que acolhia aqueles que a ela recorriam de uma forma imparcial e responsável, em um tempo em que era impensável a hipótese de um juiz corrupto. Estou órfão até do sentimento religioso puro, interior e não propagandeado em discursos e ostentações diversas, sob o manto de uma pretensa humildade.
Órfão também estou do tempo em que a arte retratava mais sentimento, mais poesia, mais tranqüilidade, onde os desenhos animados para crianças eram ingênuos e hilários, onde gatos, ratos, coelhos e outros animais tinham atitudes humanas e não andróides ou robôs quase sempre voltados para o mal. Órfão dos filmes épicos, românticos, musicais ou de aventura que despertavam sentimentos nobres e suaves, onde eventuais atos violentos estavam dentro de um contexto e não tomando conta desse mesmo contexto.
Uma das piores orfandades é a da Imprensa em todos os seus segmentos, hoje dividida entre noticiários violentos entremeados por futilidades diversas, de gosto duvidoso. Lembro do tempo em que a página policial era bem definida nos jornais - hoje é difícil se achar uma página sem uma notícia policial ou quase. E nas pouquíssimas vezes em que, por acaso, estou frente a um telejornal causa-me espanto o mau gosto de seus editores. Costumo dizer que o maior aumento de violência e catástrofes que conheço está na mídia e não na vida real. Sadismo e/ou masoquismo são o traço, não só daqueles que preparam a notícia, como também daqueles que, aceitando docemente o que lhes é passado, semeiam estes horrores em todos nós através de suas palavras e de suas expressões fisionômicas. E que se atrevam a dizer que estão apenas cumprindo ordens... Há sessenta anos ouviu-se essa mesma desculpa, mas os réus foram condenados.
Finalmente, olhando para mais perto, vejo quantas vezes fiquei órfão de mim mesmo. Onde estava eu em cada um desses momentos que presenciei e que aqui citei? Durante quantas vezes ao ano fui apenas um simples espectador, por vezes conformado, por vezes inquieto, por vezes indignado, mas sempre espectador? Durante quantas vezes abdiquei do meu direito (ou seria dever?) de ser um cidadão?
E me pergunto se não estaria órfão não só da minha cidadania, mas também da tua, amigo leitor. O que tens a dizer, não a mim, mas a ti mesmo?