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O paradoxo aparente - de ver o seu trabalho exclusivamente como cura de doenças não apenas impede os médicos de efetivamente cuidar dos pacientes como também reduz seu impacto na saúde da população - não é de todo um paradoxo, mas resulta da falta de percepção do lugar e função dos conceitos da doença nessas duas áreas pertinentes à Medicina.
Eric Cassell (The Healer's Art)
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O fundamental é o paciente, não o acionista*
por Nelson Albuquerque de Souza e Silva
Nas últimas décadas houve uma introdução acrítica de tecnologias no sistema de saúde, em geral de alto custo
Ana Gomes e Fortunato Mauro
Ao analisar o impacto da aplicação das novas tecnologias na Saúde, especialmente na Medicina, o professor Nelson Albuquerque de Souza e Silva, Titular de Cardiologia, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ, avalia que a prática e o ensino médicos são reféns do poder de fogo do complexo médico industrial - cuja força não conhece fronteiras quando se trata da conquista de mercado para seus produtos. Esse poder, de acordo com evidências apresentadas pelo professor, em entrevista ao Jornal da UFRJ, não encontra resistência em países como o Brasil, que são mais vulneráveis pela ausência de organismos técnicos de avaliação de novas drogas, equipamentos e procedimentos médicos. "Somente agora, por meio de acordo técnico entre a UFRJ e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi criado o Núcleo Interinstitucional de Avaliação Tecnológica em Saúde", informa o professor.
Jornal da UFRJ: Como o senhor avalia o impacto das novas tecnologias na prática médica? Nelson Souza e Silva: Nas últimas décadas houve uma introdução acrítica de tecnologias no sistema de saúde, em geral de alto custo. Por essa razão acredito que será impossível a qualquer país, mesmo desenvolvido, acompanhar a utilização de novas tecnologias. Acrítica, porque são colocadas em uso sem uma avaliação apropriada, por meio de metodologias científicas que atestem, realmente, que estas ocasionam melhoria para a saúde.
Jornal da UFRJ: Cite exemplos. Nelson Souza e Silva: o cateter de Swan-Ganz, de colocação em artéria pulmonar. Essa tecnologia, por exemplo, foi desenvolvida há mais de 30 anos com a finalidade de medir parâmetros hemodinâmicos (da circulação do sangue), sendo largamente utilizada nos Estados Unidos e aqui, nas Unidades de Tratamento Intensivo. Mas, hoje, os ensaios clínicos demonstram a pouca utilidade dessa técnica para a sobrevida das pessoas. Ao contrário, elas indicam que esse cateter pode, inclusive, aumentar a mortalidade. Foi uma tecnologia largamente utilizada e que não sofreu avaliação adequada. Não temos no Brasil estudo de gastos, mas nos Estados Unidos o custo anual de utilização desses cateteres é de mais de dois bilhões dólares. Outro exemplo são as estatinas para baixar os níveis de colesterol (lipoproteinas). Um grupo de drogas das mais vendidas no mundo e que embora úteis, seus resultados são superestimados. Essas drogas reduzem o que chamamos de desfechos clinicamente relevantes, isto é, não apenas reduzem o colesterol, mas podem também reduzir a mortalidade cardiovascular, ou seja, têm a probabilidade de reduzir a ocorrência de Infarto do miocárdio ou de Acidente Vascular Cerebral (AVC). No entanto, os resultados dessas reduções de desfechos relevantes não são assim tão significativos como se alardeia. Tomemos um exemplo geral. Quase todas as drogas que utilizamos apresentam efeitos benéficos com redução de risco em torno de 20 a 40%. Mas essa redução de risco não é de risco absoluto e sim de risco relativo. O que isto significa ? Consideremos que em um ensaio clínico (os estudos que avaliam a eficácia das drogas) se verifica que entre os casos que tomaram placebo (pílula sem efeito farmacológico) observou-se uma taxa de letalidade de 10% (10 em cada cem pacientes que tomaram o placebo faleceram) em 5 anos (período do estudo) e que entre os que tomaram a droga, 7% também faleceram. Portanto, ocorreu uma redução de risco absoluto de 3% ou seja, apenas 3 pacientes em cada 100 que tomaram a droga se conseguiu evitar o desfecho em questão comparado com o grupo placebo. Portanto, 97 pacientes em cada cem que tomaram a droga não tiveram qualquer benefício. Este benefício pequeno é difundido para a população, mencionando apenas a redução relativa de risco, ou seja, dizendo que a droga reduziu o risco em 30% (7% em relação a 10%). Se o risco basal (sem a droga) for de 1% e a droga reduzir o risco para 0,7%, ter-se-ia os mesmos 30% de redução de risco relativo, mas agora apenas 3 pacientes em mil que usaram a droga se beneficiariam. Portanto quanto menor o risco basal menor o benefício. Do possível benefício obtido com a droga ainda temos que subtrair os prováveis malefícios ou efeitos colaterais. Ainda mais, convencionou-se arbitrariamente, que esta diferença de risco entre os pacientes tratados e os que receberam placebo pode ser aceita como estatisticamente significante ou como não ocorrendo ao acaso, com um erro menor que 5%. Ora, aceitar um erro de 5% de que o resultado pode não ser verdadeiro nos parece um erro muito alto quando estamos lidando com possibilidade de morrer. Se baixássemos este erro para 1% ou melhor, ainda 1por mil, a grande maioria das drogas não seria aceita como benéfica. Portanto, torna-se fundamental difundir para a população esse conhecimento mínimo sobre a interpretação dos reais benefícios das drogas ou procedimentos terapêuticos.
Jornal da UFRJ: São os laboratórios que impõem o consumo dessas drogas? Nelson Souza e Silva: Se eu desenvolvo uma droga eu quero vendê-la, quero ter lucro com ela. Esse é o grande problema. E você aceita usar a droga porque foram feitos ensaios clínicos que servem para o marketing da droga. Para isto eu não preciso mentir, apenas passar a impressão que a droga que reduziu a probabilidade de risco em 3%, um efeito pequeno, reduziu o risco em 30% e, portanto, se deve dar a droga para todo paciente com um determinado problema pois todos podem se beneficiar de seu uso. Na realidade a minoria dos pacientes terá o benefício (1 em cada 30 ou 1 em cada 100 ou até 1 em cada 500 e isto não é difundido.
Jornal da UFRJ: Diante dessas evidências o senhor está empunhando uma bandeira? Nelson Souza e Silva: A bandeira não é somente minha, tem um monte de gente falando sobre isso. A ex-editora de uma das mais conceituadas publicações médicas do mundo, o New England Journal of Medicine (da Massachusetts Medical Society - EUA), Marcia Angell, foi demitida depois que escreveu o quarto editorial condenando o marketing de drogas. Recentemente, ela publicou um livro sobre uso de drogas, sobre como a indústria farmacêutica nos engana e sobre o que podemos fazer a respeito. É uma briga difícil de ganhar, uma vez que é contra uma indústria que investe bilhões. Fora isso, tem ainda o marketing agressivo sobre os médicos: passagens e estadias para congressos, por exemplo. Dentro desses congressos são realizados os chamados simpósios satélites, momento em que convidados da indústria farmacêutica fazem o marketing de suas drogas.
Jornal da UFRJ: Os países subdesenvolvidos são os escoadouros mais promissores dessas drogas? Nelson Souza e Silva: Lógico, uma vez que não temos muitas barreiras. Os países desenvolvidos já formam agências de avaliação tecnológica em saúde e conseguem brecar algumas importações que não sejam avaliadas de forma crítica.
Jornal da UFRJ: E no Brasil? Nelson Souza e Silva: Nós temos a Vigilância Sanitária e alguns outros organismos de governo como o DECIT (Departamento de Ciência e Tecnologia) do Ministério da Saúde. Mas somente agora, com o Núcleo Interinstitucional de Avaliação Tecnológica em Saúde, criado por um acordo técnico entre a UFRJ e a Fiocruz, com apoio do Ministério da Saúde, passaremos a ter profissionais da área científica pesquisando a incorporação de tecnologia para o sistema de saúde. É uma iniciativa inédita e um grande avanço, mas dependerá de apoio e investimentos governamentais. A indústria faz ensaios clínicos para ver o benefício das drogas, mas não publica os ensaios que dão resultados negativos e de certo modo induz benefícios maiores do que os reais e diminui impacto dos efeitos maléficos.Quem tem que fazer ensaios clínicos bem feitos é o governo através de suas universidades públicas. A ciência é um bem público e, portanto seus resultados devem beneficiar a todos. Existe uma contradição irreconciliável entre socialização e a apropriação da produção. Devemos assegurar que o dinheiro público investido em pesquisas científicas seja traduzido em produtos que beneficiem o público. Por vezes, não interessa às empresas privadas investir em ensaios clínicos que possam indicar os malefícios de seus produtos ou na comparação de suas drogas com outras produzidas por seus competidores. Exemplo recente disto foi a comparação entre drogas anti-hipertensivas. Foi necessário o governo estadunidense financiar um grande estudo comparativo, pois este tipo de ensaio clínico dificilmente seria financiado pela indústria farmacêutica.
* Publicada no Jornal da UFRJ em outubro de 2005.
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