Delenda Sarney!
por Fritz Utzeri
Em meio a toda a balburdia e paralisia do Senado, um detalhe que chama a atenção é a posição de José Sarney que no íntimo não deve estar entendendo a razão de tanto barulho. Para uma parte consideravelmente majoritária do patriciado brasileiro não existe uma linha de distinção muito clara entre interesse público e privado. Sarney deve ir dormir todas as noites com a santa convicção de que não fez nada de errado ao desviar recursos públicos para a sua fundação/mausoléu ou ao usar sua posição e influência para conseguir um emprego para a namorado da neta. O Estado para esse setor do patriciado é considerado "coisa nossa", quase um direito divino, e o nepotismo é tão natural em Brasília quanto o era para os papas do Renascimento, que nomeavan netos e sobrinhos, às vezes sagrando-os cardeais ainda crianças e os cumulavam de privilégios e prebendas. A expressão "nepotismo" vem da palavra italiana "nipote" que significa tanto sobrinho quanto neto.
Isso é tradicional no Brasil desde que D. João III estabeleceu o regime das capitanias hereditárias. O Brasil até hoje é um país onde um número pequeno de famílias se beneficia ilicitamente do Estado. Grupos de pressão privados de todos os matizes mamam nas tetas da República e a conta é paga pela miséria de parte considerável da população e pela espoliação constante e crescente da classe média que já paga cerca de 40% do que ganha para sustentar a farra. Impostos europeus para serviços africanos.
Aí está a essência do problema brasileiro: o Estado precisa ser estatizado. Quando me refiro à estatização não quer dizer que o Estado deva fornecer serviços telefônicos ou fabricar aço, mas é indispensável que cumpra a contento seu papel de Estado e justifique os impostos pagos com bons serviços de educação, saúde segurança, transporte público, justiça, defesa, serviços universais, ou seja, ao alcance de toda a população sem distinção de qualquer espécie. As instituições republicanas devem ser eficientes, enxutas e transparentes. Não deve haver lugar para compadrio e o mérito e a eficiência devem ser os critérios prevalentes para entrar no serviço público e a ética a condição para exercê-lo. Namorado, sobrinho ou neto só teriam acesso a cargos mediante concurso legítimo e sem qualquer outra possibilidade. Não existiria qualquer "cargo nosso", cartório ou capitania. Isso deveria ser um princípio republicano, uma clausula pétrea da cidadania.
Mas Sarney ainda é um mal menor, senão menor, pelo menos mais suave, civilizado. O que dizer de um Senado onde bucéflos (que o cavalo de Alexandre me perdõe) como Collor, Renan e Wellington Salgado, que vociferam para proteger Sarney da indignação de um homem do porte e da biografia de Pedro Simon, um dos poucos senadores que ainda dão idéia de que o Senado deveria ser uma assembléia de equilíbrio, correção e sapiência. Esses três são o aspecto cangaceiro de nossa vida política. Collor dá medo e causa espanto pela loucura desvairada e incontinência emocional. Ele tem a quem puxar e eu se fosse Simon temeria por minha vida, bastando lembrar o episódio Arnon de Mello, também no senado, um senado em que a média de representantes era, apesar disso, certamente superior, intelectual e moralmente à casa atual.
Enquanto isso, setores que alucinadamente se pretendem de esquerda vociferam denunciando o "udenismo" dos que se escandalizam. Udenista foi José Sarney no começo de sua vida pública há exatos 59 anos(!), depois foi da Arena, o partido do golpe "o maior partido do ocidente" e do PDS, uma "evolução" da Arena de onde passou direto para o PMDB. Collor é cria do golpe, "filhote da ditadura", como o qualificava Leonel Brizola. Renan e Wellington Salgado ou Paulo Duque, me poupem...
Causa repugnância o nível bestial a que chegamos no Senado com discursos destemperados, furibundos, ameaçando revelar pretensas sujeiras dos que pedem o afastamento de Sarney. Se coisas erradas há, que se denuncie. A política "a clé" não serve para ninguém, em geral não passa de um jogo sujo como o que a dupla dos maiores defensores atuais de Lula/Sarney já exerceram contra o próprio Lula quando este concorreu à presidência contra Collor. Mas isso é outro assunto: político tem estômago de avestruz, duro é aguentar tudo isso sem nos perguntar: Mas para que serve mesmo o Senado?