Uma Aula de Medicina
por
Luiz Roberto Londres
Por algum motivo, nossa cultura ocidental tem procurado objetivar da maneira mais profunda e mais minuciosa possível a tarefa médica. O sentido da visão tem sido eleito o grande decifrador de diagnósticos, através do exame de imagens geradas por poderosos aparelhos tais como tomografias, ultra-sons, ressonâncias e poderosos microscópios. A vontade do ser humano de delegar a terceiros, sejam eles especialistas ou aparelhos, as suas capacidades de interpretar e raciocinar cresceu na esteira de um complexo de "culpado a priori" desenvolvido pela Medicina defensiva originário nos Estados Unidos. Ou seja, o médico tende a ser considerado culpado de um insucesso se não se tiver cercado de uma série de providências objetivas (exames, formulários, pareceres, etc.) que possam ter uma apreciação legal.
Juizes e promotores ainda não conseguiram decifrar a contento o que seja a tarefa médica, tentando reduzir os seus princípios aos princípios que regem a matéria legal. O próprio sistema como um todo, autoridades, imprensa, seguradoras e medicinas de grupo e, o mais triste, médicos e pacientes não costumam dar valor a respeito do que seja a reflexão médica em suas áreas diversas: campos e limites da Medicina, objetivos da Medicina, possibilidades da Medicina e, principalmente, sabedoria da Medicina.
Curar é apenas um detalhe em meio a tantas tarefas que envolvem a atividade médica, um campo onde certezas têm tantas vezes um lugar duvidoso e onde dúvidas costumam, com alguma freqüência, ser a única certeza disponível. Muitas doenças são incuráveis levando inexoravelmente à morte (a mais comum delas chama-se "vida"). Conduzir o paciente por essa caminhada fatal é uma tarefa dolorosa, difícil e pouco compreendida. Gera ansiedade tanto no paciente quanto no médico, esse confrontado com a impotência inerente à sua tarefa e que tanto o desagrada pois traz à sua consciência o fato de que não é Deus. E é justamente por isso que é a tarefa onde mais oportunidade ele tem de desenvolver a noção do humano, de solidariedade, de compaixão. Poucos médicos têm o preparo para exercer essas funções. A grande maioria sente-se eximido de suas tarefas médicas e se afasta silenciosamente da sua relação com o paciente.
A história abaixo é um pequeno conto que me foi enviado por uma colega de trabalho que não é médica ou enfermeira nem pertence a qualquer das áreas clínicas; mas que captou tão bem o simples e profundo significado da nossa missão hipocrática. Algo que nem a mais maravilhosa das máquinas pode fazer.
Janela do Olho
O cenário: uma enfermaria geral de um hospital semi- abandonado no Oriente Médio. O quarto, apesar de grande, possui uma única janela, sempre fechada por espessas cortinas brancas que apenas deixam entrever a paisagem lá de fora, através de uma fresta que de vez em quando se abre por instantes, quando o vento balança as cortinas ou quando o paciente, cuja cama está contígua à janela, com muito esforço, levanta um pouco o corpo e consegue afastar as cortinas, aumentando por momentos a fresta.
A história: "Sou um doente terminal como todos os meus companheiros do quarto. Estamos presos ao leito, por causa da doença, incapazes de nos levantar e andar. Não há visitas de fora. De tempo em tempo aparecem apressadamente alguns médicos e enfermeiros. Passamos o dia todo a olhar o teto mal iluminado. Mas, no leito contíguo à janela estava Jacó, no mais cobiçado dos leitos. Para lá só podia ir, quem fosse o primeiro do "ranking" da doença terminal. Só Jacó podia dar uma espiada na paisagem do mundo lá fora. Ele era, por isso, a nossa espia, o nosso olheiro, nossa curiosidade, esperança, alegria e novidade. "Lá vem a menininha que vende flores!" anunciava ele. "Como está ela a vender?", perguntávamos curiosos. "Parou de chover... Olha, as crianças estão brincando nas poças d'água!", relatava Jacó. E nós, preocupados: "Será que vão apanhar da mãe?", "Vão pegar resfriado!"...
A minha doença piorou. "Tornei-me o segundo doente mais grave da enfermaria. Portanto, o candidato mais próximo na sucessão à cama de Jacó. Logo que ele morresse, o leito desejado seria meu. Aos poucos comecei a Ter raiva de Jacó. Um dia Niklas, cuja doença se agravou de repente, suplicou a Jacó que trocasse com ele, apenas por uma dia. Queria morrer, depois de satisfazer o seu último desejo, o de dar uma espiada no mundo lá fora. Jacó recusou o pedido. No dia seguinte Niklas estava frio; amanhecera morto. A minha raiva se transformou em rancor. Comecei a desejar a morte de Jacó. Num dia de inverno, piorou o estado de saúde de Jacó. Com voz trêmula e ofegante ele disse: "Amanhã vai fazer um bom tempo. À noite o céu estava cheio de estrelas...!". E, dizendo isso, morreu.
No dia seguinte, finalmente fui transferido para o desejado posto à beira da janela. Com um sentimento de surdo desprezo por Jacó, e tomado pela expectativa da visão há tanto tempo esperada, não senti nenhuma tristeza nem pena pela sua morte. Os enfermeiros me carregaram para o leito à beira da janela, a cama que fora de Jacó. Com o coração a bater, como louco, de esperança e curiosidade, agarrei-me ao parapeito da janela para erguer um pouco o corpo e finalmente gozar a maravilhosa paisagem do mundo lá fora...
Ali, lá fora, se estendia, cinzento e sujo, o imenso paredão do muro da fábrica vizinha, qual uma ulterior cortina de concreto armado a fechar a visão.