26.dez.2025



Mais Cartas
Novos Horizontes para a Medicina
por Luiz Roberto Londres

A Portaria Número 126 do Ministério da Educação recentemente baixada, regulamenta a avaliação das escolas médicas através do Exame Nacional de Cursos. Entendemos que as medidas determinadas por ess ...

Espírito Público e Medicina Privada
por Luiz Roberto Londres

Dois hospitais privados em nossa cidade criaram, através de seus médicos, programas que procuram encaminhar a resolução de situações que não parecem fazer parte do interesse comercial da Medicina p ...

Reflexões a respeito de Transplantes
por Luiz Roberto Londres

A discussão em torno da lei que regulamenta a doação de órgãos em nosso país esconde questões muito mais abrangentes: dentre elas a questão de se chegar a conclusões antes de se passar pelas discus ...



Ver todos


Broussais mostra que os fenômenos da doença coincidem essencialmente com os fenômenos da saúde, da qual só diferem pela intensidade.

Georges Canguilhem (O Normal e o Patológico)

Leia mais


Entrelinhas
Artigos Cartas Depoimentos e Discursos Literatura
Cartas




Uma Aula de Medicina
por Luiz Roberto Londres

Por algum motivo, nossa cultura ocidental tem procurado objetivar da maneira mais profunda e mais minuciosa possível a tarefa médica. O sentido da visão tem sido eleito o grande decifrador de diagnósticos, através do exame de imagens geradas por poderosos aparelhos tais como tomografias, ultra-sons, ressonâncias e poderosos microscópios. A vontade do ser humano de delegar a terceiros, sejam eles especialistas ou aparelhos, as suas capacidades de interpretar e raciocinar cresceu na esteira de um complexo de "culpado a priori" desenvolvido pela Medicina defensiva originário nos Estados Unidos. Ou seja, o médico tende a ser considerado culpado de um insucesso se não se tiver cercado de uma série de providências objetivas (exames, formulários, pareceres, etc.) que possam ter uma apreciação legal.

Juizes e promotores ainda não conseguiram decifrar a contento o que seja a tarefa médica, tentando reduzir os seus princípios aos princípios que regem a matéria legal. O próprio sistema como um todo, autoridades, imprensa, seguradoras e medicinas de grupo e, o mais triste, médicos e pacientes não costumam dar valor a respeito do que seja a reflexão médica em suas áreas diversas: campos e limites da Medicina, objetivos da Medicina, possibilidades da Medicina e, principalmente, sabedoria da Medicina.

Curar é apenas um detalhe em meio a tantas tarefas que envolvem a atividade médica, um campo onde certezas têm tantas vezes um lugar duvidoso e onde dúvidas costumam, com alguma freqüência, ser a única certeza disponível. Muitas doenças são incuráveis levando inexoravelmente à morte (a mais comum delas chama-se "vida"). Conduzir o paciente por essa caminhada fatal é uma tarefa dolorosa, difícil e pouco compreendida. Gera ansiedade tanto no paciente quanto no médico, esse confrontado com a impotência inerente à sua tarefa e que tanto o desagrada pois traz à sua consciência o fato de que não é Deus. E é justamente por isso que é a tarefa onde mais oportunidade ele tem de desenvolver a noção do humano, de solidariedade, de compaixão. Poucos médicos têm o preparo para exercer essas funções. A grande maioria sente-se eximido de suas tarefas médicas e se afasta silenciosamente da sua relação com o paciente.

A história abaixo é um pequeno conto que me foi enviado por uma colega de trabalho que não é médica ou enfermeira nem pertence a qualquer das áreas clínicas; mas que captou tão bem o simples e profundo significado da nossa missão hipocrática. Algo que nem a mais maravilhosa das máquinas pode fazer.

Janela do Olho

O cenário: uma enfermaria geral de um hospital semi- abandonado no Oriente Médio. O quarto, apesar de grande, possui uma única janela, sempre fechada por espessas cortinas brancas que apenas deixam entrever a paisagem lá de fora, através de uma fresta que de vez em quando se abre por instantes, quando o vento balança as cortinas ou quando o paciente, cuja cama está contígua à janela, com muito esforço, levanta um pouco o corpo e consegue afastar as cortinas, aumentando por momentos a fresta.

A história: "Sou um doente terminal como todos os meus companheiros do quarto. Estamos presos ao leito, por causa da doença, incapazes de nos levantar e andar. Não há visitas de fora. De tempo em tempo aparecem apressadamente alguns médicos e enfermeiros. Passamos o dia todo a olhar o teto mal iluminado. Mas, no leito contíguo à janela estava Jacó, no mais cobiçado dos leitos. Para lá só podia ir, quem fosse o primeiro do "ranking" da doença terminal. Só Jacó podia dar uma espiada na paisagem do mundo lá fora. Ele era, por isso, a nossa espia, o nosso olheiro, nossa curiosidade, esperança, alegria e novidade. "Lá vem a menininha que vende flores!" anunciava ele. "Como está ela a vender?", perguntávamos curiosos. "Parou de chover... Olha, as crianças estão brincando nas poças d'água!", relatava Jacó. E nós, preocupados: "Será que vão apanhar da mãe?", "Vão pegar resfriado!"...

A minha doença piorou. "Tornei-me o segundo doente mais grave da enfermaria. Portanto, o candidato mais próximo na sucessão à cama de Jacó. Logo que ele morresse, o leito desejado seria meu. Aos poucos comecei a Ter raiva de Jacó. Um dia Niklas, cuja doença se agravou de repente, suplicou a Jacó que trocasse com ele, apenas por uma dia. Queria morrer, depois de satisfazer o seu último desejo, o de dar uma espiada no mundo lá fora. Jacó recusou o pedido. No dia seguinte Niklas estava frio; amanhecera morto. A minha raiva se transformou em rancor. Comecei a desejar a morte de Jacó. Num dia de inverno, piorou o estado de saúde de Jacó. Com voz trêmula e ofegante  ele disse: "Amanhã vai fazer um bom tempo. À noite o céu estava cheio de estrelas...!". E, dizendo isso, morreu.

No dia seguinte, finalmente fui transferido para o desejado posto à beira da janela. Com um sentimento de surdo desprezo por Jacó, e tomado pela expectativa da visão há tanto tempo esperada, não senti nenhuma tristeza nem pena pela sua morte. Os enfermeiros me carregaram para o leito à beira da janela, a cama que fora de Jacó. Com o coração a bater, como louco, de esperança e curiosidade, agarrei-me ao parapeito da janela para erguer um pouco o corpo e finalmente gozar a maravilhosa paisagem do mundo lá fora...

Ali, lá fora, se estendia, cinzento e sujo, o imenso paredão do muro da fábrica vizinha, qual uma ulterior cortina de concreto armado a fechar a visão.




Busca avançada de textos:








Home | Links de Interesse | Direitos de Uso

Desenvolvido por Canvas Webhouse
2007 - Todos os direitos reservados - Luiz Roberto Londres