Reflexões a respeito de Transplantes
por
Luiz Roberto Londres
A discussão em torno da lei que regulamenta a doação de órgãos em nosso país esconde questões muito mais abrangentes: dentre elas a questão de se chegar a conclusões antes de se passar pelas discussões. É comentado o fato de que os japoneses, ao contrário do que acontece no Ocidente, "discutem meses uma idéia e a aplicam em minutos". Parece que estamos levando muito a sério o fato de sermos seus antípodas.
A questão dos transplantes não se esgota em si e não pode ser tratada como parte da Medicina tradicional nem mesmo da cultura vigente. É na verdade o início de uma nova percepção prática do necessário alargamento do pensamento médico para além das fronteiras do paciente. Esta nova situação envolve a sociedade como um todo e não apenas medidas a serem tomadas pelo Estado. O receptor é o paciente, o doador foi ou teria sido um paciente. O foco é o receptor, o móvel é o doador. Ambos são seres humanos. Qual dos dois tem mais direitos? O direito de um deve prevalecer sobre o direito do outro? Que tipo de fundamento moral estamos empregando nessa discussão?
A questão ética deve, necessariamente, preceder o arbitramento legal. Caso contrário poderemos estar criando leis irrefletidas, fruto de um momento emocional ou de puro interesse particular. O dispor do próprio corpo, mesmo que seja após ter sido encerrada a trajetória vital de uma pessoa, é assunto por demais delicado para ser tratado à margem de discussões mais profundas. Não é um assunto legal, sequer científico. É um assunto, em princípio, filosófico e cultural. E como tal deve ser tratado.
Minha posição pessoal quanto à doação de meus órgãos é favorável. Mas é importante que eu diga que isto acontece na parte lógica de meu pensamento. Na parte simbólica sou assaltado por dúvidas sejam elas de ordem religiosas, esotéricas ou supersticiosas, não importa, fazem parte de mim e as ouço com atenção. Como com atenção devem ser ouvidos os familiares nos casos em que não houver vontade expressa de doação ou não doação de órgãos. E se dúvidas existem em meu universo particular, imagino a multiplicidade de dúvidas que existam em um universo social para serem resolvidas por um simples decreto travestido de lei nas conotações mais profundas que essas palavras carregam.
Sou um intenso leitor da teoria que envolve a prática médica. Vejo com freqüência como a abordagem simplista de um problema complexo pode desfigurar uma bela idéia. Vejo tantas vezes as certezas absolutas serem pulverizadas por dúvidas por vezes ingênuas. Vejo uma necessidade de se traçar uma trama teórica antes que se discuta a prática. No caso dos transplantes, por exemplo, está latente a discussão "De quem é o corpo? Do indivíduo ou da sociedade?" Nunca vi essa discussão vir a público considerando os amálgamas da cultura brasileira.
A assistência à saúde passa por transformações substanciais (as principais ainda latentes) em todo o mundo. Considero que podemos resumi-las em uma grande definição: seja no conhecimento da matéria médica, seja no escopo da atuação médica, estamos partindo do individual para o social. Os médicos e as instituições de hoje estão em pleno processo de mutação. O que reforça a necessidade de se refletir profundamente não só a Medicina atual, mas principalmente as novas questões que se apresentam ao campo médico.
Uma realidade a ser encarada é de que a transplantologia é uma especialidade que, na verdade, não está inserida na Medicina, mas na qual a Medicina está inserida. É uma especialidade que precisa muito mais de apoio do que de regulamentação. Um bom caminho seria sensibilizar as empresas de Seguros-Saúde e Medicinas de Grupo para que encarassem desde já essa nova realidade e passassem a cobrir (e cobrar por) transplantes de órgãos ou tecidos. E que os administradores da área da saúde se reciclassem em suas idéias e ações, que os hospitais privados entendessem melhor o seu papel social e que a organização dos hospitais públicos se mirassem em exemplos vitoriosos como o do Hospital Municipal Lourenço Jorge no Rio de Janeiro.
Estamos frente à uma oportunidade única para que aqueles que lidam com a saúde, médicos, governantes entendam (para que não sejam alijados da discussão), que a definição do pensamento social está fora de sua alçada, cabendo a eles, isto sim, a participação nos debates sobre a matéria e a obrigação de referendar a vontade da sociedade com o respeito devido aos diversos segmentos que a compõe.