Caleidoscópio
por Luiz Roberto Londres
(Yo Soy Yo y mi circunstancia)
Ortega y Gasset
Um ensaio sobre a cidadania
1960
F. e filha de uma nobreza ainda enriquecida. Desgosta-lhe ver o país governado por um presidente que se mistura com cabos e marinheiros e que só fala em trabalhadores. Ora, pensa F., com que audácia esse presidente e os que o cercam podem esquecer os trabalhadores que tinham sido seus avos, seu pai e que (ainda) e seu marido que, naquela quarta-feira a tarde dormita no sofá a seu lado. Sim, e claro, esta muito cansado? Afinal a responsabilidade de gerir um império ou o que dele restava e muito cansativa. E agora, volta e meia, lhe falam de um tal de comunismo que irá tirar dela e de sua família tudo o que seus avós haviam construído. F. pensa nas suas pratas, nas suas jóias, nos seus tapetes e em tudo o que possui. Ao pensar nos cafezais de sua propriedade vem-lhe a idéia salvadora. Acorda o marido dizendo-lhe: "Querido, já resolvi! Se vier esse tal de comunismo não vamos ficar aqui nos expondo; pegamos nossas coisas e vamos todos para a fazenda".
1970
C. estava em viagem de turismo com um grupo de amigos muito chegados. A cidade que ora visitavam era conhecida por estar próxima a um belo e imponente conjunto de quedas d'água. C., ao passar pela portaria, viu que o hotel oferecia um belo passeio de barco que chegava muito próximo ao inicio da maior queda, de onde podia se observar o arco-íris eterno e o vôo das andorinhas de maneira privilegiada. C. procurou seus amigos para fazer o passeio. Alguns tiveram receio mas C. os exortou dizendo que dificilmente teriam outra oportunidade; alem do mais não era caro. No dia seguinte embarcaram todos. Ao chegarem no ponto mais critico foram alarmados pelo dono do barco: estava havendo um problema grave com o motor, não funcionava mais. Viram todos com horror o barco ser arrastado num vórtice em direção a queda mais alta. C. encolhido, com medo que o culpassem e com medo da morte, aproveitou-se do pânico e, sem ser percebido, escorregou para a correnteza.
1980
J. viaja para Miami como faz quase todos os meses, não sabe bem se para fugir de alguma coisa, se pelo dinheiro das compras que faz e revende com grande lucro ou se apenas para dizer que viaja para Miami quase todos os meses. Mais tarde isso viraria uma rotina para muitos brasileiros mas não naquele tempo de racionamento de petróleo. J., relaxado a dez mil metros de altitude percebe de súbito cinco elementos se levantarem, desembrulharem automáticas, mandarem todos se abaixarem e gritarem bem alto de modo que até o piloto possa ouvir: "Esse avião vai para Cuba". O passado político de J. não recomenda um desembarque na ilha. Verifica que sua poltrona se encontra ao lado de uma saída de emergência. Um dos seqüestradores afirma que, caso alguém se mexa, destruirá o avião com granadas e morrerão todos. J., em seu inexistente altruísmo pensa de si para si: danem-se todos. Salvar-se-ia ele. Aproveitando um leve descuido do seqüestrador escalado para vigia-lo, silenciosa e cuidadosamente abre a porta de emergência e sai do avião ameaçado.
1985
P. é medico, formado ha já uns tantos anos. Desde o inicio verifica ter grande pendor para a pratica clinica. Com o tempo seus horários de consulta são cada vez menos ociosos, seus honorários cada vez mais saborosos, o numero de seus procedimentos crescentes a cada ano. Seu prestigio atinge um ponto que ele pode considerar excepcional. E, assim, um tipo "primus inter pares". Nem se preocupa quando ouve falar que a clientela de seus colegas esta escasseando. Isto não diz respeito a ele, afinal de contas não são muitos os médicos que possuem a sua força. Ouve as lamurias de jovens colegas que não conseguem receber mais que um decimo do que ele cobra . Sim! enquanto ele cobra os outros apenas recebem. P. não percebe, ou não dá importância, em como é crescente o número de colegas, cada vez mais próximos, que se queixam dessa questão. Ultimamente até mesmo alguns de seus colegas das associações e das egrégias congregações. Felizmente ele está imune a esses problemas das periferias médicas. E, deduz que nem é bom tomar conhecimento dessa situação. Sim! não há porque participar dessas reuniões para se queixar de migalhas. Mesmo que tenha agora, não sabe porque, alguns horários ociosos em seu consultório.
1990
M. foi viajar. Nunca havia entrado em um navio mas os amigos o convenceram a fazer um cruzeiro pelo Pacifico Sul. No quinto dia após o jantar, M. sente que o navio balança muito, muito mais que o simples acompanhar o movimento das ondas. M. vai para o convés e, no caminho ouve de um tripulante que foi detectada uma violenta tempestade e que é grande a possibilidade de um furacão. M. observa uma embarcação ao longe quase a desaparecer por entre as imensas vagas que já lambiam seus pés. M. vê quando o mar traga aquela enorme embarcação como se fora ela um mísero barquinho da infância. M. vê quando a onda morde, babando, o casco de seu navio abafando os alto-falantes que gritam confundindo-se com sirenas e corre-corre da tripulação. M. vê quando o mar invade todo o convés cascateando pelas escadas para os salões dos andares inferiores. M. olha a enorme ameaça a sua volta e não se abala; sabe o que fazer. Sobe para seu luxuoso camarote no último convés e lá se tranca. Ali, sabe ele, está completamente a salvo, bem acima da superfície das ondas.
2000
X. acaba de ler o jornal da manha. Mal consegue terminar seu desjejum preocupado com os fatos desagradáveis que pontificam no noticiário. Sua vida, progressivamente, tem se tornado uma ante-sala do inferno com temores e sobressaltos. Roubos, assaltos, seqüestros e outros crimes variados parecem estar substituindo a paz e a fraternidade no convívio entre os cidadãos. X. repassa seus planos de se mudar de cidade ou mesmo de pais e se recrimina de não tê-los levado adiante. Num instante seu pensamento é tomado por imagens de bombas e atentados nas principais capitais do primeiro mundo, cataclismos climáticos na Ásia, vírus terríveis na África e terrorismo e trafico de drogas na América Latina. Desolado pesa os prós e contras e acredita não ser a essa solução. Não, talvez o melhor seja ficar quieto em seu condomínio com Papaízes e seguranças (para isto é que existem) e não se meter em política, associações ou movimentos que visem estimular a cidadania. Quando as coisas melhorarem, aí sim, quem sabe...