Sabático
por Luiz Roberto Londres
Ainda tenho uma certa dificuldade em me perceber em sabático. Afinal, paradas e mudanças de rumo fazem parte da minha vida. Sempre fui um questionador e um sonhador, gosto de viajar no campo das idéias. De vez em quando, vou para algum lugar bem tranqüilo e passo um tempo refletindo e escrevendo. Às vezes, nem vou longe; houve tempo em que me refugiava na Floresta da Tijuca, outras vezes era em Pedra de Guaratiba. Nesses períodos leio, medito, escrevo ... muitas idéias e, por vezes, poesias. Tenho prontos um livro, e um sem número de sonetos e outras poesias aguardando não sei o que para serem publicadas.
Iniciei minha vida médica como cientista trabalhando com o Prof. Carlos Chagas Filho. Ao me formar trabalhei como professor de semiologia e posteriormente como cardiologista e hemodinamicista. Pouco depois da formatura assumi a direção médica do hospital que meu pai dirigia, a Clínica São Vicente. Em toda a minha vida profissional fui um defensor da humanização da prática médica. Em 1997, escrevi e publiquei um livro "Iátrica - A Arte Clínica", que resume algumas idéias minhas a respeito da Medicina. Além do livro tenho escrito artigos para diversos jornais e para a Letter da Clínica São Vicente.
Sem interromper o trabalho, voltei diversas vezes aos bancos escolares na busca de novos rumos. Convivi com jovens e com pessoas de outros ambientes profissionais, o que sempre me dá grande entusiasmo - procuro aprender com todos. Ainda na década de 70, fui à PUC me especializar em administração para melhorar o desempenho gerencial do meu hospital. Em 1989, voltei à Universidade Federal do Rio de Janeiro , onde me formei (no meu tempo, era a Faculdade Nacional de Medicina, da Universidade do Brasil) para fazer uma especialização mais ampla em administração (MBA) no Coppead.
Antes disso, porém, fiz a incursão que me pareceu mais importante e que mais tinha a ver com as minhas inquietações. Voltei à PUC na década de 80 para um mestrado em filosofia. Imaginei, na época, que estavam ali as grandes respostas para a maioria das minhas dúvidas e inquietações. O livro Iátrica, diversas mudanças que implementei na gestão da Clínica São Vicente desde então, boa parte das conferências que ministro e dos artigos que escrevo têm a ver diretamente com a consolidação conceitual que obtive no curso de filosofia.
Tive a felicidade de contar com uma boa formação clássica, mas as influências que mais me impressionaram eram quase clandestinas. Essa "conspiração" começou na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, no meu terceiro ano de Medicina. Muito me impressionava a capacidade que eu e alguns poucos colegas adquirimos com a ajuda dos psicanalistas Danilo Perestrello e Abram Eksterman. Eles nos ajudavam a fazer diagnósticos clínicos de alguns pacientes apenas com base na anamnese psíquica; e com um nível de precisão impressionante.
Tempos depois, fui fazer análise e comecei a desenvolver um lado de revisão interior. Quando vim para o hospital, em 1966, na minha cabeça já existia a idéia de que a Medicina estava enveredando por um caminho equivocado. Aliás, naquela ocasião não se via o caminho da tecnologia, que hoje é dominante, via-se apenas o caminho da ciência. A tecnologia ainda era incipiente. O equívoco, a nosso ver e no pensamento dos meus influenciadores, era a grande importância que os médicos davam à ciência e o grande descaso que existia pela pessoa do paciente. Tratava-se de combater a doença, e não de atender o paciente. Para os dias de hoje, é só trocar ciência por tecnologia e ver que permanecemos ao mesmo ponto. Pior! Com mais agressividade!
Minhas primeiras percepções foram na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro; com muita freqüência paciente era despojado da condição humana para servir apenas de instrumento de ensino. Essa cultura era passada para os estudantes. Chegávamos ao leito, examinávamos o paciente como um objeto e não como um sujeito, os comentários feitos ali mesmo com o paciente na nossa frente, como se não houvesse ninguém. Em contraste, recordo-me que a chegada do pediatra à minha casa sempre fora motivo de alegria. O mesmo posso dizer das idas ao meu dentista. Eles me mostravam como realmente se atende um paciente.
Eu visitava hospitais nos Estados Unidos e ficava impressionado com a frieza lá existente. Os primeiros CTI eram salas enormes, escuras, às vezes sem janelas, com as macas jogadas, sem nenhuma preocupação com as pessoas que lá estavam. Era tanta a atenção e tal o foco no tratamento médico que os cuidados com o bem estar das pessoas ficavam negligenciados. E hoje se sabe que isso tende a piorar o estado do paciente. Nessa época o único CTI que me impressionou foi o de um pequeno hospital em Curitiba, o Santa Cruz. E copiei o modelo para o meu hospital. Chamou a atenção o fato de se dar ênfase à aparência como se isso pudesse desvirtuar a missão principal de um centro de terapia intensiva; mas valeu a pena - passamos a ter um lugar mais acolhedor, iluminação, cor e arrumação diferentes. Por sinal, há alguns anos, num congresso sobre CTI sentamos na mesma mesa de debate o escritor João Ubaldo Ribeiro, nossa enfermeira-chefe, o chefe de nosso CTI, um psicanalista e eu. João Ubaldo ali estava para repetir as pesadas críticas que fizera numa crônica sobre o tratamento avaliado como desumano que recebera durante uma internação. A atitude do auditório foi de crítica à sua postura. Fiquei satisfeito de ver a mesa concordar plenamente com ele.
Sempre procurei administrar pensando primeiro como paciente e depois como médico (hoje temos que pensar também como seguradora). Não pensava no que eu queria, mas no que os outros precisavam. Por isso forcei um constante aperfeiçoamento do meu pessoal, com incentivos como, perguntar "o que você pode fazer a mais, o que você pode fazer para aprender, como você pode progredir?", dando algumas tarefas que não eram rotineiras, eram de auto aprimoramento. Quando criamos foros de debate de melhorias sem nivelamento hierárquico, a motivação da enfermagem, dos médicos e dos funcionários de apoio cresceu consideravelmente e a Clínica São Vicente deu um grande salto de qualidade chegando ao patamar atual, desfrutando da imagem de hospital mais qualificado e humanizado da cidade. Nosso aprimoramento foi enriquecido na forma de cursos e congressos, dando o atual rumo do Centro de Estudos e Pesquisas Genival Londres que leva o nome de meu pai. O Centro é hoje um grande canal de difusão das idéias de avanços tecnológicos e de humanização da Medicina.
Fazer paradas me ajudou a enfrentar os muitos desafios que surgiram. Lembro-me que, no final da década 70, o advento da tomografia computadorizada representou um espetacular avanço tecnológico na esfera diagnóstica. Ao mesmo tempo trazia o risco de aprofundar a desumanização na prática médica. Era o "chip" entrando na Medicina. Já era possível vencer a barreira óssea na radiologia, foi um avanço fantástico. A decisão da compra de um aparelho não levou mais que poucas horas. No dia da inauguração tive o prazer de ouvir de um de nossos médicos, o Prof. Sérgio Novis: "- Sugiro que você pendure um estetoscópio nessa porta para que os médicos não se esqueçam de ouvir os doentes".
Mais que nunca, era preciso equilibrar os dois fatores: a técnica e a humanização. O uso da tecnologia é importantíssimo, mas seu abuso é muito perigoso. Tecnologia traz avanços que exigem, às vezes, revisão conceitual, não só de procedimentos. Coloca o profissional diante de um outro mundo trazendo consigo um modismo terrível que é se delegar ao aparelho o raciocínio clínico. E os leigos são influenciados com essas idéias, com o culto à máquina, com o desprezo pela relação médico-paciente.
Há que se viver em uma permanente dualidade: acompanhar os avanços tecnológicos e, ao mesmo tempo, manter a "amigabilidade" de uma instituição médica. A melhor tecnologia ainda é o cérebro humano. Nenhum aparelho faz melhor diagnósticos que os neurônios e suas sinapses. Um frase atribuída ao filósofo Maimônides (1135-1204); diz que "uma consulta deve durar 1 hora; nos primeiros 50 minutos ouça o paciente nos outros 10 minutos finja que o examina". Trata-se de um evidente exagero, particularmente nos dias de hoje, com tantos recursos técnicos a apoiar os diagnósticos. Mas, não deixa de ser uma irreverência muito atual nos tempos de consultas-minuto. Temos que apontar os erros e desvios da Medicina de hoje mostrando a governantes, convênios, médicos e dirigentes de hospitais que a Medicina tornou-se caríssima, entre outros fatores, porque paga-se errado. Mais atenção à integridade humana resultaria em consultas mais longas e eficazes, atendimentos mais conclusivos, menor solicitação de exames, menos sofrimento, menos absenteísmo no trabalho, para ficar apenas nos aspectos mais evidentes.
Sou, e quero continuar sendo um constante questionador e um ávido buscador de conhecimentos e novas experiências. Essa é a minha maneira de fazer sabáticos. Tenho extremo prazer em aprender coisas novas e maneiras novas de ver coisas antigas. Não tenho o perfil de quem deve lidar com rotinas. Há pouco tempo contribuí para a formatação do currículo de um novo curso de Medicina na Universidade Estácio de Sá, com ênfase na formação do médico e na Medicina humanística. Ficamos satisfeitos ao ver que uma recente portaria do Ministério da Educação corrobora todas as nossas idéias. Isso é muito importante pois se queremos mudar uma atividade a melhor maneira é através da "pedomorfose", ou seja, através de alterações em suas formas embrionárias. É pelo aluno de hoje que construiremos o médico e a Medicina de amanhã.