Médicos Ditadores
(11/9/2002 | Revista Veja)
O dono da Clínica São Vicente, um dos hospitais mais conceituados do Rio de Janeiro, critica a forma como a medicina é praticada.
Anna Paula Buchalla / Oscar Cabral
"Na ânsia de viver mais, estamos perdendo o prazer de tomar um bom vinho, apreciar um prato de carne, matar a vontade de comer um doce"
O cardiologista carioca Luiz Roberto Londres, de 61 anos, é proprietário e diretor da Clínica São Vicente, um dos hospitais mais conceituados do Rio de Janeiro. Nessa função, era de esperar que fosse um arauto dos incríveis avanços que remodelaram a medicina nos últimos anos. Mas Londres tem uma visão diferente de sua profissão. Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica carioca, ele é bastante crítico em relação ao modo como a medicina vem sendo praticada e divulgada nos dias de hoje. Condena o que chama de medicalização da vida e assesta suas baterias contra o primado da tecnologia nos diagnósticos. Londres acredita que, na maioria dos casos, os equipamentos não são tão eficazes quanto um médico bem treinado, que enxergue o paciente como um ser humano
integral. "Os aparelhos, que deveriam ser coadjuvantes, roubaram a cena principal", diz Londres nesta entrevista a VEJA.
Veja - Como o senhor vê o enorme interesse das pessoas por assuntos médicos?
Londres - Com preocupação. Estamos vivendo um período que chamo de ditadura da medicina. Todo mundo se sente obrigado a seguir rigorosamente as normas médicas que nos são impostas. O resultado disso é que, na ânsia de viver mais, estamos perdendo o prazer de tomar um bom vinho, apreciar um prato de carne, matar a vontade de comer um doce. Esses prazeres ficaram proibidos. É a medicalização da vida. Tomar um vinho é uma das melhores coisas que existem. Por que tirar esse prazer das pessoas? Essa ditadura está nos roubando o sabor da existência. O tempo todo somos bombardeados com centenas de novos estudos científicos que dizem que determinado alimento pode causar câncer ou que tal hábito da vida moderna pode levar ao infarto. É um verdadeiro terrorismo médico.
Veja - Mas esses estudos não são sérios?
Londres - Não estou dizendo que nenhum estudo merece crédito. Aliás, boa parte deles tende a ser séria. É preciso tomar cuidado, no entanto, com as suposições apresentadas em tom de afirmação. Recentemente, um colega me trouxe um estudo que associava o uso do telefone celular ao desenvolvimento de tumores no cérebro. Todo o texto estava no condicional - "poderia, levaria" -, mas na transcrição de uma frase de um pesquisador havia o fatídico "afirmou fulano". Pode parecer um detalhe, mas esse tipo de coisa passa a idéia de que todos os dados ali contidos estão comprovados, são verdade absoluta. Na realidade, é hipótese em cima de hipótese, com uma afirmação no final. Isso é um exemplo do terrorismo médico a que me refiro. Além disso, é preciso ter em mente que a verdade científica é quase sempre passageira. No livro A Lógica da Descoberta Científica, o filósofo austríaco Karl Popper mostra isso. Uma teoria é verdadeira com base nos conhecimentos que existem até o momento em que ela foi formulada. Ela pode ser reforçada ou contestada, dependendo do que vai sendo descoberto. O exemplo mais recente foi dado pela polêmica em torno da reposição
hormonal. Há pouco tempo, a verdade científica dizia que a reposição era uma ótima terapia para as mulheres. Agora, o tratamento se voltou contra elas. Concluiu-se - e eu acho que há exagero nisso - que a reposição aumenta os índices de câncer acima do tolerável, do ponto de vista estatístico. Quando comecei a estudar medicina, sabia-se que o alcoolismo levava à cirrose hepática. Nos últimos anos de faculdade, a causa da cirrose passou a ser alcoolismo associado à desnutrição. Depois que me formei, voltou-se à teoria do alcoolismo como fator isolado da doença.
Veja - O senhor acha que os resultados desses estudos não deveriam ser divulgados?
Londres - De forma nenhuma. Sou da opinião de que, quanto mais conhecimento, melhor. Acho que isso contribui para que as pessoas se tornem donas de seus tratamentos e que se previnam contra doenças. Eu mesmo, quando tenho algum problema de saúde, vou correndo para a internet. O problema, volto a dizer, é que atualmente as medidas de prevenção estão sendo levadas ao extremo. O grande risco humano não é a morte. Viver é o grande risco. A maioria das proibições impostas pelos doutores de hoje me lembra a religião católica, em que tudo o que é prazeroso é proibido.
Veja - Antes era melhor?
Londres - O que posso dizer é que, no passado, os médicos eram mais humanos e valorizavam mais a alegria de viver como fator de manutenção da saúde. Veja o caso dos franceses: eles almoçam sentados, passam horas num café e ainda por cima fumam. Mas sofrem menos de problemas cardíacos e são mais longevos do que os americanos. Na minha opinião, uma pessoa que se dispõe a viver bem tem muito mais chance de ter boa saúde do que aquela constantemente preocupada em evitar doenças.
Veja - O senhor acha que muitos procedimentos são desnecessários?
Londres - Sem dúvida. Os médicos estão tirando o doente da vida, ainda em vida. Posso citar como exemplo a história de uma conhecida minha. Aos 70 anos, ela recebeu o diagnóstico de um câncer incurável, que não levaria mais do que seis meses para matá-la. Mesmo assim, o médico lhe aconselhou a submeter-se a uma operação. Com a cirurgia, viveria um pouco mais. Só que não lhe disseram que, se não se submetesse à operação, ela poderia aproveitar o pouco tempo que lhe restava com uma saúde razoável, desfrutando a companhia dos filhos e dos netos, em casa. Pois bem, essa senhora viveu nove meses, depois do diagnóstico e da operação, mas teve de enfrentar sessões pesadas de quimioterapia. Resumo da história: passou os seus últimos meses sofrendo de um terrível mal-estar. O que teria sido melhor para ela?
Veja - Mas não é uma obrigação médica tentar salvar uma vida até o fim, com todas as armas disponíveis?
Londres - Sim, mas não podemos nos esquecer do bom senso. O problema é que, ao mesmo tempo que contamos com equipamentos de última geração, que realmente salvam vidas, falta sensibilidade aos médicos de hoje. O bom senso é fundamental. Os médicos estão rigorosos além da conta. Eles costumam recomendar a um paciente que tenha sofrido um infarto que evite, por exemplo, tomar um chope ou comer uma feijoada. É um exagero. Obviamente não vou recomendar que as pessoas saiam por aí bebendo - mas um copo de chope não faz mal a ninguém. O que faz mal é privar o paciente desse pequeno prazer.
Veja - Se alguma coisa der errado, o médico pode vir a ser responsabilizado por aquele copo de chope.
Londres - A função primeira do médico não é se defender. É defender o paciente. Esse é o grande problema: os médicos que se defendem antes de defender o paciente não estão exercendo a sua profissão como deveriam. É o que acontece nos Estados Unidos hoje. O médico, para se prevenir da acusação da chamada má prática, pede quinhentos exames. Conheço a história de um cirurgião pediátrico brasileiro que saiu da sala de cirurgia e disse à família: "Cometi um erro, vou corrigi-lo". Sabe qual foi a reação da família? Ela ficou agradecida pela sua franqueza e disposição em cuidar do doente.
Veja - Nos Estados Unidos, uma situação dessas é motivo para um processo milionário, que pode até resultar na cassação do registro profissional do médico.
Londres - Sim, é tão grande o número de ações contra médicos que hoje existe uma verdadeira indústria de processos. Essa indústria alimenta o terrorismo médico. Com medo de serem processados, eles cercam-se de todos os cuidados. No caso, o maior número possível de exames e internações. É uma bola de neve.
Veja - À medida que aumenta o conhecimento sobre as doenças, não aumenta também o medo das pessoas?
Londres - É o mesmo princípio do mercado financeiro: quanto mais notícias negativas, maior o nervosismo. As pessoas são bombardeadas com as informações do que faz mal, do que causa câncer, problemas cardíacos, diabetes... E ficam cada vez mais assustadas, correm para os consultórios médicos e entopem-se de remédios. Um estilo de vida saudável é suficiente para evitar uma montanha de medicamentos. A exceção fica por conta da aspirina, que comprovadamente faz bem ao coração por ser um anticoagulante fantástico. O grande problema do mundo moderno são os excessos. Comer de vez em quando um hambúrguer de lanchonete não mata ninguém do coração, por mais "cardiopatizantes" e "obesificantes" que sejam os fast foods.
Veja - Então um cigarro por dia não faz mal?
Londres - Por que um cigarro faria mal a alguém? Nenhum médico libera o cigarro a seus pacientes porque quase ninguém consegue fumar apenas um por dia. Mas insisto: tudo é uma questão de bom senso. Conheço o caso de uma mulher acidentada que ficou tetraplégica. Quando estava internada, ela pediu ao seu médico para fumar um cigarro e ele negou. A paciente estava fragilizada, queria ter um pequeno prazer e recebeu um não como resposta por causa de um rigor bobo. Isso não é ser razoável.
Veja - Bons equipamentos não garantem uma melhor prática médica?
Londres - Na maior parte das vezes, o uso extensivo de equipamentos só serve para encarecer o sistema de saúde. Nosso modelo tem sido a medicina americana, a mais cara do planeta, com custos 60% maiores do que a canadense e 100% maiores do que a européia. E nem assim ela apresenta resultados grandiosos. Um estudo recente feito em um hospital universitário alemão analisou a acuidade diagnóstica nos anos de 1958, 1968, 1978 e 1988. A avaliação dos resultados chegou a duas conclusões básicas. Primeira: o uso da tecnologia pesada não melhorou o diagnóstico. À exceção do câncer, os índices de acerto ficaram iguais ou até pioraram. Veja: em 1958, não existiam endoscopia, tomografia, ressonância, biópsia nem ultra-som. A segunda conclusão: de todos os métodos diagnósticos, o que se mostrou mais conclusivo foi o relato da história clínica do paciente seguido do exame físico. É o de menor custo e o que mais agrada ao paciente.
Veja - Como é possível que, mesmo com todo o aparato técnico, os resultados não sejam melhores?
Londres - Os aparelhos, que deveriam ser coadjuvantes, roubaram a cena principal. A tecnologia, citando o médico americano Eric Cassell, um estudioso do assunto, tornou-se a vassoura da feiticeira: adquiriu vida própria. Os médicos perderam o contato com os pacientes, não os ouvem como deveriam. O quadro tende a piorar porque os novos candidatos a médicos têm características cada vez mais técnicas e menos humanitárias. Um médico de verdade tem de entrar na complexidade psicológica e biológica de seu paciente. E isso não se faz somente com aparelhos.
Veja - O senhor não tem medo de soar passadista?
Londres - Eu não repudio os avanços técnicos. Não sou louco. Mas constato que a medicina saiu fora de seu eixo principal, a consulta, para se basear em exames complementares. Quando uma consulta é bem-feita, o diagnóstico correto é atingido em cerca de 90% dos casos. Há uma frase atribuída a Maimônides, médico espanhol do século XII, que diz: "Uma consulta deve durar uma hora. Por cinqüenta minutos ausculte a alma do paciente. Nos outros dez faça de conta que o examina". Um certo exagero, é verdade, mas ela serve para mostrar a importância da dimensão humana. Atribuir a aparelhos a arte da clínica é o mesmo que atribuir a arte de Picasso à marca de seus pincéis.
Veja - Qual o critério que o senhor, como paciente, utiliza para escolher um médico?
Londres - Em primeiro lugar, não vou a médico mais importante do que eu. Médicos que dão mais importância a si próprios do que aos pacientes devem ser evitados. Profissionais pouco afetivos também representam um problema. Há alguns anos, o escritor João Ubaldo Ribeiro foi internado na minha clínica. Depois que recebeu alta, ele escreveu uma crônica sobre a experiência. João Ubaldo criticou o atendimento que recebeu no centro de terapia intensiva. Disse que tudo era muito impessoal e que faltava humanidade naquele ambiente. Resolvi, então, convidá-lo para um debate na minha clínica, do qual participariam médicos, enfermeiros e estudantes. A maior parte dos profissionais reclamou. Eles achavam que a presença do escritor era desnecessária. Fiquei impressionado com a falta de visão humana. Na minha opinião, esse problema é fruto do tecnicismo que domina a prática médica hoje em dia. O paciente é tratado como um número de estatística, um corpo desprovido de vontade e de história.