Maria José Limeira entrevista Luiz Roberto Londres
(1/8/2003 | Encontros de Escrita)
O Poeta ainda não nascido escreve poemas quando eles brotam do fundo d'alma ou quando algum assunto me eleva para outras dimensões. O Amante Apaixonado? Ah! Esse é fruto do tempo e me acompanha ontem, hoje, amanhã e sempre. E alimenta todos os demais!
Doutor Luiz Roberto Londres não é apenas Médico e Cientista. É também Filósofo e Poeta. Embora resida no Rio de Janeiro, onde dirige a Clínica São Vicente, suas raízes estão na Paraíba. Recentemente, esteve em João Pessoa, proferindo palestra sobre os rumos da Medicina, para uma seleta platéia composta de pessoas da área, entre elas, dirigentes da classe patronal e de entidades de classe. Por que eu estava ali entre eles, como ave fora do ninho? Tinha um sentido para mim aquilo tudo, pois conhecera o Doutor Londres (pasmem!) numa Lista de Discussão de Literatura, via Internet. Fiquei impressionada com o teor da sua conferência, que defendia os Direitos dos Pacientes e a Humanização do Ato Médico. A entrevista que ele me concedeu depois foi realizada através da Internet. Ei-la, na íntegra:
1. Hospital Público X Clínico Particular: quem ganha a guerra?
R: Costumam ser tênues as diferenças entre guerra e amor. Diria que podem ser o mesmo valor apenas com sinais trocados. E é triste estarmos falando em guerra quando o assunto é Medicina, mas isso está acontecendo. Em havendo essa guerra só deveria haver um ganhador: o paciente. Qualquer outro resultado é vitória de Pirro, derrota da própria Medicina. Mas a guerra da questão proposta talvez seja a de menor importância. Piores guerras são as guerras comerciais dos hospitais privados entre si e dos interesses políticos com os interesses assistenciais nos hospitais públicos. De um lado o mercado, de outro a massa. Em ambos os casos um profundo erro de visão - Medicina é aplicação de conceitos genéricos em casos particulares. Mais objetivamente, em relação à pergunta, façamos o possível para que ganhe o Hospital que comungue com os verdadeiros princípios éticos que regem a boa prática médica.
2. Fraudes no SUS: quem ganha e quem perde?
R: Vamos entender a pergunta de maneira bem abrangente. Quando falamos em fraude costumamos pensar intuitivamente em finanças, pois essas ganham manchetes, quando na verdade significam muito mais que isso. As maiores fraudes são cometidas contra os pacientes, algumas delas visando lucros sem custos. Mas existem outras, aquelas que são fraudes simplesmente por não considerarem a tarefa médica assistencial em toda a sua plenitude, por abrigarem o descompromisso com o real interesse do paciente. Essas podem ser cometidas em qualquer lugar, nos melhores hospitais públicos e privados, por estarem privilegiando outros valores: ensino, ciência, status ou simplesmente por desinteresse do médico ou da instituição. Essas são, por vezes, mais sutis ou com alegações de interesses legítimos porém de modo ilegítimo. Quanto às fraudes no SUS perdem os pacientes e a população em geral e ganham uns poucos médicos, donos de laboratórios e hospitais ou políticos perversos.
3. Hospital Público X Clínica Particular X Paciente: como fica o Paciente nesta história?
R: Geralmente um número a mais ou a menos. Parte de um mercado ou parte da massa. Isto é, até um certo ponto compreensível do ponto de vista dos acionistas do hospital privado ou das autoridades acima do hospital público. O problema é que o pensamento consolidado, indispensável para as administrações, costuma ser imposto àqueles que lidam com o dia a dia, com o atendimento a pacientes. E por vezes a voz da direção médica não existe ou não se faz ouvir da maneira adequada com a independência devida ao cargo. Considero que o Diretor Médico de uma instituição de saúde deva ter as mesmas prerrogativas que tem um piloto em pleno vôo: cada internação é uma decolagem, cada alta uma aterrissagem; entre elas vale a voz do piloto e não da administração da empresa aérea.
4. O que é desumanização da Medicina?
R: É simplesmente a falta de noção de que o paciente seja um ser humano em toda a sua complexidade biopsicossocial. Existe uma tendência a se encarar o diálogo médico-paciente como algo lógico e completo quando na verdade a lógica apresentada está colorida por simbolismos e outros sentimentos. Existe uma tendência, em vias de reversão, acredito, de se encarar a realidade biológica como a única a ser abordada, diagnosticada e tratada. O preparo do médico e, principalmente, do estudante ainda é tímido nessas áreas. Existe uma tendência para se estender a necessária objetivação do paciente (que é um sujeito) para além dos tempos necessários para exames diagnósticos e procedimentos terapêuticos. A chave para a humanização passa principalmente pela anamnese bem feita por médicos preparados para apreender e desenvolver a psicodinâmica do encontro clínico e na ligação. E dotados da missão médica.
5. Conte como se deu, na História, o processo dessa desumanização.
R: A Medicina teve em sua história diversos processos diversos de desumanização. Suas origens, nos magos e shamans das sociedades pré-literatas, mas, sem dúvida, partiu da vida interior, psicológica e da vida exterior, social, com os magos, shamans e sacerdotes. Visavam a curas do corpo e alma através de magias ou orações e invocações milagrosas. O grande processo de desumanização, no meu entender, deu-se paradoxalmente com o seu progresso científico. Cresceu aos poucos um pensamento reducionista em relação a fatos meramente objetivos. A ciência desvendou, pouco a pouco, o organismo humano enquanto a religião continuava "dona" das atividades psicológicas e psiquiátricas. O ser humano, aos poucos era reduzido à sua dimensão biológica aos olhos da Medicina. Mesmo Freud, o "libertador" da psique, procurava explicações neurológicas para os fenômenos mentais. Na minha opinião os grandes responsáveis pela nova tendência menos reducionista e mais holística (mesmo que essa palavra esteja desvalorizada por usos incompletos e incorretos) da Medicina são os físicos e correlatos. As novas teorias desenvolvidas trouxeram novas visões ao mundo material e cartesiano e começam a influir positivamente na Medicina: o estudo do eletromagnetismo com Michael Faraday, a teoria dos quanta de Max Planck, a teoria da relatividade de Albert Einstein, a teoria da incompletude de Kurt Gödel, a teoria da complementaridade de Niels Bohr, a teoria da incerteza de Werner Heisenberg e principalmente a teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy.
6. Medicina X Tecnologia: quem ganha é o Paciente? Por quê?
R: A tecnologia é simplesmente o braço armado das ciências médicas: geralmente olhos e ouvidos nos diagnósticos, braços e mãos nos tratamentos. O paciente ganha com o uso da tecnologia e perde, e muito, com seu abuso. O abuso da tecnologia ou o seu uso em substituição à clínica encarecem e são causa de iatropatogenias, ou seja, males causados pelos usos impróprios ou errados da atividade médica. A Medicina é uma atividade de relação interpessoal; e o cérebro humano é a "tecnologia" soberana e insubstituível nessa atividade. Portanto, ganha o paciente cujo médico com ele souber se relacionar e que usa prioritariamente sua capacidade de raciocínio e sua sabedoria para compreender e encaminhar os seus males nas esferas física, psíquica e social.
7. O avanço da Medicina trouxe os grandes problemas da época para Governos de todo o mundo: a superpopulação e a sobrevida dos velhos. Como enfrentá-los?
R: A sobrevida dos velhos, mais que um problema, é uma grande esperança. Lidar com ela deveria ser uma tarefa recebida com alegria. O que acontece é que os cálculos financeiros para gastos médicos e aposentadorias vão por água abaixo o que é assunto de economistas e atuários. Eles têm um problema a resolver, uma situação a ser re-estudada. Nós temos possibilidades de estender nossas vidas e cabe a cada um de nós fazer disso um valor e não uma punição. Simples seria se o governo investisse em algo que trouxesse compensações para essa situação. Estresse e hábitos de vida são responsáveis por mais da metade das patologias. O ultrapassado modelo estrutural da atividade médica é outro grande gerador de gastos e adoecimentos reais ou virtuais. Mas planejamentos, prevenções e educação nessa área não têm estado no foco de nossas autoridades e, além do mais, não costumam ter repercussões que possam trazer dividendos imediatos. Quanto à superpopulação, tenho duas considerações: na primeira eu diria que ela é focal, ou seja, está concentrada em determinadas regiões enquanto temos enormes áreas do planeta totalmente desabitadas; mesmo considerando áreas de reservas essenciais, temos ainda muito espaço para habitar. Quanto à segunda, temos alguns pontos a considerar: no final de 1999 chegamos a 6 bilhões, duplicando a população de quarenta anos antes.
8. Médico assalariado e mal pago: como isto repercute no atendimento aos clientes da rede pública, no Brasil?
R: Repercute, é claro, mas não é o principal problema. A tarefa médica encerra um certo pensamento missionário. Lido com médicos que preferem outras compensações a simplesmente aumento de seus ganhos. Não vejo problema no fato do médico ser assalariado, desde que não seja mal pago, ou seja, tenha o retorno financeiro adequado e possa aprimorar continuadamente sua atividade. O que mais vejo é a falta de dar aos médicos uma motivação em sua missão e em seu aperfeiçoamento pessoal. Transformar o médico em simples funcionário na acepção mais antiga da palavra, ou seja, em simples mão de obra, tira a alma da Medicina. Isto repercute, com muita freqüência, na visão que o médico tem do paciente, também "coisificado" e, portanto, sem ter suas necessidades básicas atendidas.
9. Poder e Impotência do discurso médico: onde termina o Poder? Onde começa a Impotência?
R: A Impotência começou há muito tempo, quando começou a Onipotência. Ambas são duas faces da mesma moeda, algo do tipo "quem tudo quer, tudo perde". Falar em poder médico não me agrada, Medicina não é uma profissão de poder, é uma profissão de relação. O único poder que posso aceitar é o poder da argumentação lógica e sensível nos reais interesses dos pacientes e da população. Todos os outros são desvios inadmissíveis em nossa atividade. Asclépio, o deus grego da Medicina, foi fulminado por Zeus quando exerceu poderes além de suas atividades; mitos sempre devem ser observados, encerram verdades inerentes às próprias narrativas.
10. Em princípio, hospitais particulares estariam melhor preparados para atender os pacientes, em relação aos hospitais públicos, no Brasil. Há quem ache que não. Até onde vai a verdade?
R: Não é uma verdade geral. Devemos nos lembrar sempre que o que faz hospitais serem bons ou maus não são tijolos, belezas ou tecnologias. São os conceitos éticos e clínicos e a capacidade de seus médicos e demais funcionários. Os principais desvios dos hospitais particulares estão relacionados com o comércio da Medicina e dos hospitais públicos com o desinteresse das autoridades. E em ambos falta uma maior e constante vigilância por parte de todos. A idiotia (no grego "idiotes" era o indivíduo que só cuidava de seus assuntos particulares) ainda grassa em nosso meio; somos, pelo menos nesse campo, um povo ainda distante da noção real de seus compromissos e direitos.
11. A comercialização da Medicina - com crises de mercado, concorrência desleal, cartéis, e outros azares do Capitalismo - pode conviver com Ética Médica pacificamente? Por quê?
R: Diz Edmund Pellegrino, do Kennedy Institute of Ethics: os cânones financeiros costumam ser incompatíveis com os cânones éticos (médicos). A atividade médica na esfera privada traz embutida uma maior possibilidade de conflitos éticos. Capitalismo está perdendo sua possibilidade de sobrevivência assim como comunismo perdeu a sua. São, no meu ponto de vista, duas doutrinas que feneceram por não terem saído de seu "dogmatismo" inicial. Ambas, belas teorias, não resistiram à prova prática.
12. Como conciliar: o Médico, o Empresário, o Filósofo, o Poeta e Amante Apaixonado, tudo num só Luiz Roberto Londres?
R: E quem disse que se conciliam? Com freqüência se conflitam, lutam entre si, querem exclusividade, consideram-se excludentes, cantam como sereias. O Médico nasceu e vive em mim de maneira intensa com um amor quase carnal pela Medicina. O Empresário vive principalmente da missão médica em seu sentido mais abrangente. O Filósofo é fruto de uma mente curiosa, inquiridora, crítica, que vive a procurar constantemente sentidos maiores para assuntos específicos e que procurou enxergar a Medicina em seu todo, seus modelos, suas finalidades, seus limites, suas distorções e suas belezas . O Poeta ainda não nascido escreve poemas quando eles brotam do fundo d'alma ou quando algum assunto me eleva para outras dimensões. O Amante Apaixonado? Ah! Esse é fruto do tempo e me acompanha ontem, hoje, amanhã e sempre.