O Complexo de Atlas e Outros Males do Estresse
Luiz Roberto Londres
Prefácio escrito para o livro 'O Complexo de Atlas', de Alex Botsaris
A visão que Alex Botsaris tem da atividade médica é um alento para todos os que percebem a importância de se devolver à Medicina a sua face humana. Alex vive a Medicina como vive a vida, não a considera presa de fórmulas ou igrejas, propriedade de professores ou sumidades. Mais do que tudo sabe e, não só sabe como divulga, que a Medicina é para servir a vida e não a vida para servir a Medicina. Pode parecer uma ingenuidade essa afirmação, mas nossos dias têm mostrado como é freqüente estarmos todos escravizados de maneiras diferentes:
Nós, médicos, escravizados por nossos saberes, digamos assim, científicos que, na verdade, são saberes sempre passageiros de acordo com o conhecimento do momento, arvorando-se em fantásticas verdades, afirmações e descobertas; mas também de acordo com o enorme desconhecimento desse mesmo momento, de todo o conhecimento que um dia virá a tona como novas descobertas; e, pior do que tudo, com o esquecimento de velhas sabedorias, tão simples, tão úteis e tão alcance de todos, ricos e pobres.
Nós, pacientes, escravizados pelas aplicações desses saberes geralmente em cima de nossos corpos ou mesmo de nossas mentes, com alguma freqüência no esquecimento, por parte daqueles a quem nos entregamos para nos tratar, de que somos mais do que simplesmente corpos ou mentes, somos pessoas; de que mais do que biologias; somos biografias, de que mais do que meros indivíduos, somos parte de tramas outras, sejam elas familiares, profissionais, sociais e tantas mais.
Nós, cidadãos, supostamente saudáveis, escravizados por enormes espadas de Damocles exatamente como nos mostraram Horácio e Cícero*. A nós é lembrado, em momentos diversos e cada vez mais freqüentes, que estamos prestes a perder nossa saúde se não tomarmos medidas contrárias ao estilo de vida que somos levados a tomar. Se por um lado essa conscientização é salutar, por outro, cada vez mais, as buscas de ganhos e prestígios fazem com que terrorismos semeiem de medo nossa vidas e corramos atrás de resgates salvadores e milagrosos.
Alex Botsaris há muito conhece e combate esse estado de coisas.
No meu aniversário de 60 anos ganhei de meu filho o livro "Sem Anestesia" de Alex Botsaris. Lembro-me de ter ligado em pleno entusiasmo para seu editor, nosso amigo Roberto Feith, comentando os momentos semelhantes em que estávamos, Alex e eu, nos nossos estudos e devaneios, correlacionando diversas teorias gerais com a matéria médica. Parecia que havíamos nos lido mesmo antes de nos publicarmos. Saíamos da estéril "seriedade" médica para o alegre vôo das construções de correlações incipientes, do isolamento eclesial para a incorporação de outros campos em nossas linhas de pensamento.
Alex há muito trilhava o caminho onde eu me via principiante. Médico senso lato, fazendo de suas atividades principais a fitoterapia e a acupuntura, é autor de diversos livros sobre os assuntos. Publica agora ensaio interessantíssimo a respeito de um assunto que tanto perpassa nossa vida cotidiana quanto cresce de importância em relação à atenção que lhe dá a Medicina: o estresse. Mas, diferente de quase tudo o que foi escrito, Alex não medicaliza o assunto; pelo contrário o populariza associando a cada passo, como é muito de seu feitio, expressões corriqueiras, lendas antigas, figuras mitológicas: é o sentimento sendo valorizado em assuntos que tratam de agressões vindas, aparentemente de um mundo exterior mas que na verdade são originárias nas nossas reações pessoais a essas mesmas agressões.
Outra lição nos dá Alex em suas obras em geral e nessa em particular. É possível se passear pela cultura geral da humanidade sem deixar de se conhecer as entranhas de nosso organismo, sem minimizar de maneira maniqueísta as conquistas e conhecimentos que a ciência nos coloca à disposição. Do átomo e da molécula ao universo, da matéria ao espírito, da mitologia aos nossos dias Alex valoriza aquilo que é essencialmente humano sem querer julgar verdades e mentiras, realidades e fantasias, sanidade e loucuras. Em suma, Alex referenda a frase do espanhol José Letamendi quando ele diz: "O médico que só Medicina sabe, nem Medicina sabe". Ou, como dizia o romano Galeno "O melhor médico é também um filósofo".
E assim Alex se aproxima dos seus leitores, aproxima os leitores do passado de nossa civilização, dos campos imaginários de nossas idéias e das realidades descobertas por nossos cientistas. Telômeros (acabo de aprender) e apoptoses dividem seu espaço com expressões idiomáticas; Stephen Hawking com Perseu e Aquiles, o Dragão com avestruzes e, no centro de tudo, uma figura que vale a pena ser mais bem colocada nessa introdução: o Titã Atlas.
Atlas é o nome de nossa primeira vértebra, aquela que "sustenta" nossa caixa craniana. Perfeita sinonímia com o Titã que recebeu como castigo por sua rebeldia, a pena de ter que suportar nos ombros o peso do mundo. Em sua homenagem um oceano foi batizado. O mundo que é nosso não é o mundo físico de Atlas, mas um mundo que está representado em nosso pensamento, "dentro" de nossa cabeça, dentro do mundo suportado pelo nosso Atlas. Não é à toa que esta é a região mais freqüentemente associada às tensões da vida. Ela segura o mundo do nosso pensamento e o mundo que representa nossa vivência de nossa vida exterior. É lá que tudo se passa, é lá que nosso Atlas está condenado a assim viver condenado até "o fim da eternidade".
O estresse. Nossa relação com o meio em que vivemos faz com que situações de tensão sejam vividas a cada instante, por vezes resolvidas de modo fácil e medular, por vezes enfrentadas com medos e raivas e por vezes outras, nada raras, cronificadas em uma inconsciência ativa em corpo e alma, com mensagens subliminares que determinam resultantes de nossas ações em processos de "auto-sabotagens" e resultantes em nossas secreções humorais, enzimáticas e tantas outras. A conhecida melancolia foi assim batizada em função de uma crença antiga de que haveria a ação de uma bile (cole) negra (melano).
Um indivíduo não se reduz à sua biologia como alguns desvios médicos e científicos e até mesmo algumas linhas psicológicas querem fazer supor. Sua biologia é o organismo onde ele está instalado e o seu meio de entrar em contato com o mundo físico que o rodeia. Este mundo externo, representado por coisas e pessoas, recebe e dá estímulos ao indivíduo fazendo com que sua existência seja um constante se adaptar a esse mundo, seja em consonância com o mesmo, seja em conflito. Junto a isto esse indivíduo tem uma história, passada e futura, um conjunto de experiências e expectativas, de aconchegos e ameaças que fazem parte inerente de sua vida, de sua existência. O indivíduo, mais do que um ser biológico é um ser biopsicossocial.
Essa trama de células e pensamentos, de histórias e realidades físicas, químicas e biológicas, de consciências e ignorâncias concorre para que construções mentais sejam feitas procurando fazer com que fatos e idéias tomem uma forma mais definida e menos caótica. É o material do quais são feitas as lendas, fábulas, figuras mitológicas, religiosas e tantas outras coisas. Cada cultura com a sua, a China com seus Dragões, os índios com seus Tupãs, judeus e cristãos com seus Adãos e os gregos com seus Prometeus.
A cultura ocidental na sua grande parte é proveniente da cultura grega. Seus mitos estão muito vivos em nossas cabeças, há um Hesíodo com sua Teogonia dentro de cada um de nós. Nossas palavras mais importantes têm origem helênica. E cada cultura, por si, cria suas figuras, suas expressões, suas máximas e ditados.
O complexo de Atlas nos dá, como costumam ser as obras de Alex Botsaris, uma visão da atividade médica sob uma ótica que não é intrínseca a ela. Isso leva a uma situação tão falada em nossos dias; isso torna a Medicina mais humana, mais alegre, fazendo-a mais parte de nossa vida e não nos fazendo parte adoecida da sua vida. Melhor, esse livro é, por si, não apenas a esperança que Alex deposita ao final, um excelente antídoto ao nosso estresse cotidiano.
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